Você, antifascista, é antirracista?

junho 03, 2020

Por Gabriel Nascimento 


Você, antifascista, é antirracista? Num momento em que a polícia estadunidense assassina o afroamericano George Floyd, atiçando manifestações pelo mundo todo, esse termo, mais do que nunca, passa a predominar no repertório linguístico mundo afora.
Eu sempre fui invocado por nomes. Frequentei e decorei dicionários inteiros atrás de termos estranhos naquela parca biblioteca de Banco Central, e foi lá que eu comecei ler aquelas palavras que seriam como fantasmas durante toda a minha vida.
O fascismo foi uma ideologia política que surgiu exatamente no final do século XIX e começo do século XX, com raízes na Idade média europeia. O racismo enquanto conhecemos não. Tem raízes muito maiores e vem de mais longe.
Se você chegou até aqui e acha que vai ser uma disputa de termos por si só, pode voltar. Vai ser uma disputa de termos para ver quando e como esses dois termos se cruzam e como não confundi-los. E como um, o antifascismo, precisa do outro.
Parte de uma esquerda branca brasileira sempre se disse antifascista. Mais recentemente, sobretudo depois da tradução do trabalho da ex-candidata a presidente dos Estados Unidos pelo Partido Comunista, Angela Y. Davis, muita gente branca vem se alcunhando antirracista. Porém, basta que o sistema político seja atacado, que a vicissitude antidemocrática se apronte no horizonte, para que o guarda-chuva do antifascismo apareça para, supostamente, proteger a todos de maneira igual.
É aí que nós retornamos ao racismo do mundo moderno. Suas constituições geram tudo que conhecemos hoje. Em Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo (Letramento Editorial, 2019) eu questiono todos esses símbolos como criados de fora para dentro do mundo africano sob a forma de signo. O racismo, séculos antes do fascismo, se constitui através de uma crença do europeu branco sobre sua suposta superioridade que, para ele, se amparava em sua civilização de iguais brancos, sem mistura, sua cor da pele e seus traços fenotípicos. Isso contribuiu para financiar sistemas inteiros de opressão, dor, horror e morte, gerando escravização, dizimação e colonialidade.
Os cancros desse período, porém, jamais foram destruídos. Países que passaram por sistemas de genocídio e escravização viram uma Europa moderna branca cada vez mais rica desenvolvendo um capitalismo moderno e universal ao passo que viam seus povos negros e indígenas sendo continuamente massacrados pelo que sobrou do domínio colonial nesses países. Não houve um Julgamento de Nuremberg sobre a escravidão. Nunca. Em nenhum país que passou por esses regimes.
É exatamente esse o argumento retomado pelo poeta e político martinicano Aimé-Cesaire em sua seminal obra Discurso sobre a colonialidade (1955). Para ele, o fato de nunca ter havido um julgamento da branquitude levou o europeu branco ao seu lugar mais profundo de incivilidade e selvageria, o tornando, ele próprio, um fiscal da padronização de sua identidade universal uma, a do branco ariano. Segundo Aimé-Cesaire, uma sociedade mal revolvida que não resolveu os próprios dilemas que causou com a racialização e o racismo dos povos negros chama para si o seu Hitler, sendo isso o que nos permite compreender que, após racializar o mundo inteiro, e o negro, por conseguinte, o europeu entrou na crise de seu próprio humanismo através do fascismo.
O fascismo é, portanto, um episódio que acontece após o esgotamento de todo o projeto escravocrata, num momento que o próprio branco europeu já não consegue lidar com a miscigenação que criou com o regime escravocrata, passando ele próprio a produzir seus monstros humanistas, como é o caso de Hitler, que passam, eles próprios a buscar uma padronização de sua identidade.
Essa análise leva a crer, como constatei em Os brancos saberão resistir? (Revista da ABPN, v. 11, p. 331-347, 2019), que o antifascista nem sempre é antirracista. O antifascista muitas vezes ignora que, antes do fascismo, veio o racismo e que, portanto, antes de reconhecer e fazer tribunais contra o fascismo, é necessário que as pessoas brancas sejam culpabilizadas pelos sistemas raciais que produziram nessa grande aventura colonial. Isso não foi feito.
João Pedros, Marielles e Georges continuam a ter a vida ceifada por esse dilema. As pessoas antifascistas são aquelas que, muitas vezes, ainda pensam numa suposta identidade nacional em que o negro é invisibilizado ou desidentificado, sendo desnaturalizado como sujeito dono de sua história. Mais do que isso. Os Estados Unidos são ainda vistos como lugar de um racismo real e de negros que não abaixam a cabeça em contraste com um Brasil onde os negros são passivos. O antifascismo, que leu a história do Brasil pelas lentes do abolicionismo dos brancos aliados do século XIX, nega a 400 anos de resistência antiescrava sua própria possibilidade de narrar nossa resistência negra, e isso é grave.
Por isso, eu não quero me dizer contra o antifascismo, mas quero propor uma reflexão. A absurda dizimação de 5 milhões de sujeitos de maioria branca gera um enorme choque até hoje em contraste à dizimação de pessoas negras sequestradas do continente africano, de suas mais diversas Áfricas, de suas mais diversas comunidades, reinos e costumes distintos que aqui passaram a ser chamadas de negras
Pouco se tem pensado o antifascismo através do antirracismo. Não são apenas nomes do dicionário, mas evidências que apontam que só pôde existir fascismo num mundo moderno e colonial que, por séculos, violou, aterrorizou e destruiu corpos, identidades e línguas negras, impondo essa palavra (o signo negro) para machucar e tendo, após a imposição, um contra-ataque em forma de ressignificação. O antirracismo continua sendo visto como uma bandeira particular, como se os negros fossem minoria num país de mais de 52% de população negra. O fascismo, porém, é alavancado pelos partidos de esquerda como uma pauta unificadora na atual democracia liberal.
E eu me pergunto, para além dos nomes, sem que haja contradição. Os antifascistas serão contra também a atual legislação de drogas, que encarcera em massa os homens negros brasileiros? Deixarão de defender criação de cadeias como política pública? Pressionarão pelo fechamento de hospitais psiquiátricos que continuam a manter um regime de opressão ao corpo negro como no regime escravocrata? Mandarão ou tentarão fechar as maternidades e demitir os médicos que tratam mulheres negras grávidas como animais? Deixarão de olhar os movimentos de parte da periferia, como tráfico, pelas lentes romantizadas de bons moços brancos que, ao passo que defendem descriminalização da maconha, o fazem pela sua liberdade de fumar, e não pelo corpo negro que expia? Deixarão de usar jovens negros amigos para serem aviõezinhos que vão até a primeira biqueira pegar o baseado? Lidarão com mulheres negras como fontes de sabedoria ancestral ao invés de olhá-las como empregadas? Olharão homens negros como sujeitos de sua história e não como crianças ignorantes que precisam sempre serem mediadas por uma falsa civilidade branca?
São algumas das muitas perguntas que já têm a resposta NÃO. O racismo é um sistema estruturante no Brasil. O fascismo não. Quando os integralistas prostram por aqui suas raízes, eles só o podem fazer graças ao movimento eugênico brasileiro, e graças a gente como Monteiro Lobato, Sylvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues, que engrossavam, desde as laudas racialistas e racistas de Gilberto Freyre a Euclides da Cunha, uma visão de Brasil que, desde a década de 40 do século XIX, é um projeto de Brasil sem negros, em que miscigenação significa morte das pessoas retintas e seus traços negroides.
Todo fascismo no Brasil precisa de racismo e racialização para ter sentido. Não é por acaso que os extremistas querem, desde sempre, reeditar a Ku Klux Klan entre nós, porque seu passado é nada mais do que escravocrata. Ser antifascista é preciso, mas sem antirracismo nada mudará e não haverá democracia jamais. Enquanto o branco progressista e o conservador escrevem antídotos liberais baseados nas constituições do Estado moderno, pessoas pretas continuam na mira das armas de última geração da polícia militar, e nada pode nos salvar.

     Gabriel Nascimento é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia. Doutor em Letras pela USP, foi Visiting Scholar na University of Pennsylvania, e é autor de “Racismo linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo”.

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