Entrevista: Reni Eddo-Lodge

fevereiro 03, 2020




Em 2014 a premiada jornalista Reni Eddo-Lodge escreveu sobre suas frustrações a respeito da forma como as discussões sobre raça e racismo no Reino Unido estavam sendo lideradas por aqueles que não eram afetados por isso. Ela postou um texto em seu blog, com o título: Por que eu não converso mais sobre raça com pessoas brancas.
Suas palavras atingiram em cheio. O post viralizou e chegaram comentários de outras pessoas desesperadas para compartilhar suas próprias experiências. Impressionada com essa explícita necessidade de uma conversa franca, ela decidiu se aprofundar na fonte desses sentimentos publicando um livro com o mesmo título do post. Explorando questões desde a erradicada história negra até o propósito político da dominância branca, do feminismo branqueado até a intrínseca relação entre classe e raça, Reni Eddo-Lodge proporciona uma oportuna e essencial estrutura nova de ver, reconhecer e combater o racismo.
Agora, o livro da jornalista britânica chega ao Brasil. Conversamos com a autora e ela nos concedeu uma entrevista incrível em que ela estabelece um diálogo entre raça, racismo e  sociedade, sem deixar de citar a relação do Reino Unido com o Brasil. Confira:

1) “Por que eu nãoconverso mais com pessoas brancas sobre raça” era um livro muito aguardado por muitos leitores aqui no Brasil. Como você se sente com seu livro viajando o mundo e abrindo espaço para o diálogo em outros países?

Ok, essa é uma pergunta muito boa porque desde que eu comecei no Instagram como uma autora, sempre tive pessoas brasileiras e portuguesas comentando nos meus posts perguntando “quando o livro vai sair no Brasil?”, “quando o livro vai sair no Brasil?”. E fiquei tão aliviada quanto eu finalmente pude dizer que o livro estava chegando. Eu visitei o Brasil ano passado, eu fui para o Rio de Janeiro para um evento do Dia da Consciência Negra e foi incrível. Foi particularmente emocionante conhecer pessoas que estavam militando nas favelas e saber que elas tinham lido meu trabalho.
Se você leu o livro, você sabe que é muito provinciano, doméstico, é muito voltado para a Grã-Bretanha e o britanismo, e isso se deu por motivos pessoais, eu precisava falar sobre o meu próprio país. Mas vem sendo surpreendente e emocionante ver que leitores em todo o mundo podem se identificar com os argumentos políticos e com as análises sobre poder presentes no livro. Porque o livro é uma análise sobre poder e a supremacia branca e como a estrutura política é um fenômeno global. Estou extremamente contente de ver o livro sendo tão esperado no Brasil. Um abraço para meus leitores brasileiros.

2) Como foi o processo de escrever um livro sobre um tema tão forte e potencialmente polêmico? Você chegou a se questionar ou o questionar o projeto em si?

Acho que muitas pessoas me fizeram essa pergunta após a publicação, mas a realidade da minha vida antes da publicação do livro é que eu era uma ativista, sabe? Então todo mundo meio que sabia no que eu acreditava. E meu ativismo era sobre militar contra o racismo, sexismo, patriarcado e tudo isso. Então esse era o meu mundo, essas eram as conexões que eu tinha, então não foi surpreendente para ninguém. Também acho importante pontuar que completei 30 anos alguns meses atrás, então fui uma criança na crise econômica, graduei durante uma recessão.
Em nenhum momento após a publicação do livro eu tinha uma chance na sociedade, não tinha nada a perder. Acho importante frisar isso porque às vezes as pessoas mais velhas que eu, com existências mais confortáveis, me dizem “Reni, vou está falando sobre coisas que falamos secretamente há anos, mas ninguém quer perder seu prestígio na sociedade por falar sobre isso”. Mas eu não tinha nada a perder, o sucesso do livro foi o que me deu prestígio, o que acho que é uma ironia hilária. Voltando na pergunta, “tema tão forte e potencialmente polêmico”.
Agora na minha segunda década como ativista contra o racismo e sexismo, eu não estava preocupada com as reações das pessoas a respeito do livro. Sei que muitas pessoas acham que a intenção do livro era provocar intencionalmente, mas certamente não é o caso. Acredito que o mainstream sempre foi hostil para com sentimentos antirracistas, então quando você tem algo como o meu livro, com publicidade por trás, é algo que assusta muitas pessoas. Mas acho que isso é problema de cada um.

3) No livro, você fala sobre como foi ver o post ganhar vida própria com todos os tipos de reações. Hoje, 5 anos depois, e sendo autora de um best-seller, como você vê o impacto das suas palavras e a importância de ter se expressado daquela forma?

É engraçado, não é? Eu não fui apenas uma cria da recessão, também fui uma cria da internet. Eu estava sempre escrevendo, blogando etc, isso tudo sempre foi parte da minha natureza, e eu cresci com a internet então não foi estranho para mim colocar meus textos na internet. E quanto mais política eu me tornava, mais política minha escrita de tornava. Quando fiz aquele post em 2015 e muitas pessoas começaram a responde-lo, não foi algo que antecipei. Eu postava meu trabalho na internet há algum tempo... acho que foi meu bichinho. Então ninguém ligava para o que eu tinha a dizer.
Então é bem surpreendente, não é? Quer dizer, ainda estou lidando com o impacto do que isso significa para pessoas que interagem com isso, pessoas que criam todos os dias. É realmente impressionante. Estou divagando agora, vou voltar para a pergunta. Como vejo o impacto das minhas palavras? Acho que com o post inicial foi incrível ver minhas palavras ecoando, mas ao mesmo tempo é decepcionante porque comprovou como era um problema mundial.
Como a supremacia branca é um problema político. Acho que acabei descobrindo naquela época as palavras para algo que muita gente estava sentindo. E aquelas palavras já foram ditas antes, certo? O sentimento já foi expressado anteriormente, mesmo que não tivesse sido feito com as mesmas palavras que usei. Existiram muitos miliantes antirracistas antes de mim.

4) O Brasil é um país cuja história é diretamente ligada à escravidão, o que significa que o racismo continua a existir e é intensamente perpetuado até hoje. Seu livro está sendo lançado no Brasil em meio a uma crescente onda de movimentos sociais e tensão política. Como você vê a importante da literatura em debates tão intensos?

Eu fui uma estudante de literatura inglesa, cresci lendo, sempre amei escrever. Sempre amei o poder das palavras de te transportar para dentro da mente de outra pessoa. E também amo o poder de persuasão das palavras. Sou uma escritora, isso é importante para mim. Então é extremamente importante, sempre será.
Eu escrevo não-ficção, mas tendo a ler ficção e acredito que a ficção pode ser uma das mais políticas formas de persuasão que existem. Diria que é extremamente importante para os movimentos sociais.

5)  No dia 20 de Novembro, nós, brasileiros, celebramos o Dia da Consciência Negra no Brasil. A data faz referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, Líder do Quilombo de Palmares, que lutou para preservar o modo de vida dos africanos escravizados que conseguiam fugir da escravidão. Você acha que essas datas comemorativas são importantes e, se sim, como?

Sim, claro. E muitas vezes acho que elas são importantes porque se você olhar para quem tende a escrever a história. E acho que o Brasil é um bom exemplo. O Brasil é um país de maioria negra e mesmo assim as pessoas negras são privadas de posições de poder.
E algumas vezes acredito que você não pode depender que pessoas em cargos de poder serão capazes de apoiar movimentos revolucionários então sim, essas datas são importantes. Não tenho nada contra essas datas. Aqui no Reino Unido as pessoas tendem a questionar se é necessário ou isso ou aquilo e eu penso que enquanto o racismo existe, é necessário.

6) Você é reconhecida como uma referência para uma geração. Você vê isso como uma pressão? Como você lida com a responsabilidade de ser uma autora inovadora?

Essa é uma boa pergunta. O que dizer? Algumas vezes preciso me relembrar que minhas opiniões e minhas palavras têm um certo peso e que as pessoas realmente me escutam. Então aqui no Reino unido estamos prestes a ter uma eleição geral nas próximas semanas e pensei “eu deveria usar minha plataforma para lembrar as pessoas que me escutam para se registrarem para votar, porque as pessoas me escutam.”
 Minha vida não mudou drasticamente desde que o livro. Mudou o meu entorno, mas internamente as coisas não mudaram muito para mim. Não mudei minhas condições de vida, nem nada. Então não me vejo como a voz de uma geração. Sinto que é uma definição externa que foi colocada sobre mim. Eu ainda vivo minha vida normalmente, saio com amigos, faço meu jantar. Deixe-me voltar para a pergunta. Se vejo isso como uma pressão? Acho que inicialmente me deixava vem nervosa.
Mas depois decidi que eu iria tentar continuar vivendo minha vida e não pensar demais sobre como as pessoas pensavam de mim, porque em momento algum eu comecei a escrever coisas mais políticas para aprovação externa, para conseguir algum tipo de fama. Acho estranho e eu tento usar isso para coisas úteis. Como lido com a responsabilidade de ser uma autora inovadora? Só foco no trabalho e tento fazer um bom trabalho.
E o trabalho não é sempre escrever, é também pensar e ler e pesquisar e estar interessada no mundo, o que eu tento fazer quando não estou escrevendo. Não penso em mim dessa forma, entendo que outros pensem. Acho que às vezes é difícil entrar em algum lugar e ser lembrada de que as pessoas me reconhecem. É estranho, e não entendo porque alguém gostaria dessa validação de terceiros. Acho que se você vai ter essa validação, se você vai ser reconhecido na sua área, então tenha algo que valha a pena por trás.

7) Pessoas te veem como uma inspiração. Mas quem te inspira?

Eu decidi há um tempo que não tenho pessoas que me inspiram, ou inspirações, porque me preocupo em acabar me decepcionando, porque estou em um ponto da minha carreira em que as pessoas que me inspiravam, agora que tenho contato com elas, algumas considero amigas, e acho isso uma estranha inversão de equilíbrio. Do tipo “uau, alguém que era meu ídolo agora é alguém que tenho contato”.
E no final do dia não acredito muito nessas hierarquias então não tenho pessoas específicas às quais eu vejo como inspirações. Existem pessoas cujo trabalho eu gosto, é claro, mas não gosto de classificar as pessoas dessa forma. É quase como se você as colocasse em um nível sem criticismo. E não apoio isso. E também não acho que devem fazer isso comigo.

8) Nossos leitores adorariam saber, o que você está lendo atualmente? E tem algum livro, filme ou série que te impactou recentemente?

Acabei de terminar um livro que será lançado no Reino Unido em alguns meses chamado Such a Fun Age, é uma ficção escrita por Kiley Reid. Gostei muito, foi impossível de largar. Se passa nos Estados Unidos e é sobre relações, relacionamentos, privilégio branco, todos os tipos de coisas e impossível de largar para mim. Tinha muito drama, então realmente gostei de ler. Minha próxima leitura será Kindred, da Octavia Butler. Ainda não comecei a ler, mas está na minha bolsa pronto para a próxima vez que estiver indo para algum lugar.
E filme ou série que me impactou recentemente? Sou viciada em The O.A. Sou obcecada com Brit Marling, com o Zal... não sei pronunciar seu nome, mas sou viciada em The O.A.. Acho que foi a mais incrível, original e complexa série de TV que eu já vi nessa década. Ultrapassou limites. Fiquei muito irritada que a Netflix não renovou para uma terceira temporada. Sou viciada em The O.A., é minha série favorita dessa década.
E filmes... gosto muito de ficção científica. Assisto muitos filmes de ficção científica na Netflix. E agora, deixe-me pensar. Tem uma ficção científica que eu assisti que foi baseada em um conto chamado Arrival de um escritor de ficção científica. Acho que o nome dele é Ted Chiang. Gostei muito, gosto bastante de sci-fi. E o motivo por eu querer ler Octavia Butler é porque sci-fi é tão branco. Mesmo incluindo The O.A., que é uma das melhores coisas que eu já vi. É bem branco. Acho que estou tentando diversificar minha estante de ficção científica. E não só por isso, eu ouvi coisas incríveis sobre a Octavia Butler.

9) Você realmente acredita que existe sinceridade no crescente número de pessoas brancas discutindo privilégios?

Na minha parte do mundo, no meu pedaço da sociedade, está acontecendo. Mas isso porque, mesmo antes do livro ser publicado, eu conheci um monte de pessoas brancas antirracistas, então não sei se posso realmente te dizer que está acontecendo em todo lugar. Pessoas negras são sendo mais ouvidas, isso é certo. Se isso está acontecendo em todo lugar, eu não sei.

10) Cinco anos após a publicação do post, você vê alguma mudança na forma como as pessoas falam sobre raça e racismo?

                Sim, quer dizer, eu tinha uma meta bem ambiciosa ao escrever esse livro, e acho que isso se deve ao fato de ser uma ativista. E quando você é uma ativista seu objetivo é mudar o mundo. Estamos mirando bem alto. E era jovem também, e isso ajudou. Eu tinha ilusões de grandeza, de certa forma. Então meu objetivo era simples: eu queria mudar a forma como o meu país estava discutindo o racismo. Eu queria fundamentalmente mudar a forma que estávamos discutindo o racismo. E acho que o livro foi bem-sucedido. Não quer dizer que o racismo não está mais na política. Estamos no meio de uma campanha eleitoral no Reino Unido, atualmente, então o racismo ainda está sendo usado de formas bem horríveis. Mas pelo menos no Reino Unido as pessoas têm pensado nas coisas de uma forma mais crítica. Elas estão começando a pensar de uma forma antirracista.
 Então isso é animador para mim. Pelo menos um partido político aqui no Reino Unido colocou em suas promessas que gostaria de atualizar o currículo nacional, o que as crianças aprendem na escola para incluir o colonialismo britânico e injustiças históricas. O que é tipo, “uau”. De alguma forma estou surpresa.
Meu livro levou a esse tipo de discussão popular? Acho que o YouGov, que é uma empresa de pesquisa de mercado, soltou ontem os resultados de uma pesquisa mostrando que a maior parte dos eleitores concordam com o sentimento de que deveríamos aprender na escola sobre o colonialismo britânico e os legados das injustiças históricas que a Inglaterra está envolvida.  E não acho que teria sido assim há cinco anos. Eu realmente vejo a conversa mudando. E espero que se eu voltar para o Brasil, esse seja o caso, não sei. O Bolsonaro não parece disposto, sinto dizer. Mas adoraria visitar o Brasil e adoraria conhecer as pessoas fazendo esse trabalho. Porque me diverti da última vez.

 Reni Eddo-Lodge é uma premiada jornalista britânica. Ela já escreveu para o New York Times, the Voice, Daily Telegraph, Guardian, Independent, Stylist, the Pool, Dazed and Confused, e New Humanist. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça é seu primeiro livro.


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